Artigo – ConJur – CNJ e cartórios: serviços eletrônicos não se confundem com atos registrais – Por Heleno Taveira Torres

Está em curso no Conselho Nacional de Justiça um pedido de providências que pode trazer um grave impacto nas relações das empresas e, especialmente, na vida dos cidadãos. Uma evidência de que, para alguns, o atraso é favorável e somente a burocracia interessa, pelo quanto o inusitado pedido conduz os cartórios aos atendimentos meramente presenciais, ao se insurgir sobre a cobrança de preços para manutenção das infraestruturas eletrônicas do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (SREI).

A ferramenta eletrônica serviu à substituição dos “ofícios em papel”, e não para suprir os serviços dos registradores propriamente ditos, delegatários que são de serviços públicos relevantes para a realização da segurança jurídica da propriedade imobiliária no país. Nada além. E para quem não queira pagar por este acesso, terá a consulta de balcão livre e sem custos, quando poderão acessar seus dados perante as serventias competentes desonerados do pagamento do preço.

Por isso, o CNJ corre o risco de chancelar um retrocesso na informatização dos acessos para consultas de matrículas de imóveis, protocolo eletrônico de títulos e outros. Em tempos em que importantes investigações da Polícia Federal, da Receita Federal ou de outros órgãos dependem desses acessos para combate à corrupção, ou em que inovações fundamentais exigem intensas consultas de bancos, de seguradoras, para dinamização do crédito no país, a exemplo das demandas por empréstimos no momento da recuperação das empresas ou das garantias por imóveis residenciais (home equity), não poderíamos abrir espaço para semelhante retrocesso. Isso sem falar do apoio a bases como CNIB, ofício eletrônico e penhora online.

E a manutenção das fontes de custeio dessas centrais eletrônicas estaduais, necessárias ao regular desempenho de suas atividades, ganha ainda maior relevo quando considerada a pandemia da Covid-19. É que, diante das medidas de isolamento social adotadas como forma de prevenção do vírus, os serviços eletrônicos por ela prestados, mediante “plantões virtuais”, a exemplo de recebimento de títulos pelo e-Protocolo, visualização de matrículas e pedidos online de certidões tornam-se indispensáveis ao bom andamento dos serviços cartoriais típicos, a cargo das serventias de registro imobiliário, no país.

O sistema eletrônico não opera para substituir atos típicos a cargo dos oficiais de registro. Essa falácia é um enredo no qual o CNJ não se pode deixar servir como instrumento daqueles que propagam o atraso como meio para vender serviços de balcão. O Registro de Imóveis do Brasil (CORI-BR) e as associações de registradores não usurpam competências típicas das serventias imobiliárias. Ao contrário, as preservam e ampliam suas capacidades.

Daí a louvável iniciativa do Legislador ao instituir o Serviço de Registro Eletrônico de Imóveis (SREI), o qual foi pioneiramente acompanhado pelo Poder Judiciário paulista, e, mais recentemente, instituir o Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (ONR). Plataformas que seriam financiadas com os recursos obtidos com os acessos eletrônicos aqui tratados.

A confusão consiste, em parte, pelo modo de interpretar o Provimento nº 89/2019 do CNJ, que regulamenta o Código Nacional de Matrículas, o Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis, o Serviço de Atendimento Eletrônico Compartilhado, o acesso da Administração Pública Federal ao SREI e o estatuto do Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico (ONR), e prescreve que isto se faça “sem criar ou estabelecer qualquer ‘taxa ou contribuição’ pelos serviços que serão disponibilizados”. Contudo, os preços cobrados pelos acessos não só preexistem ao provimento, como eles não se caracterizam nem como taxa, nem como contribuição.

As atividades das centrais estaduais contribuem para a ampliação do acesso aos serviços cartoriais e desempenham funções de interesse público, motivo suficiente para entender a relevância da continuidade fonte de custeio suficiente à manutenção da infraestrutura eletrônica e de pessoal necessária às incumbências que lhe são assignadas. A ausência de gratuidade nada compromete o caráter non profitestatutariamente adotado por esses entes. Em vista disso, a cobrança de preço para visualização eletrônica de documentos não tem nada que ver com os atos tipicamente registrais, para os quais tem-se a cobrança de emolumentos, ou de “taxa”.

Vale recordar, a Corregedoria Nacional de Justiça, órgão do CNJ, em 18 de junho de 2015 editou o Provimento nº 47, pelo qual foram estabelecidas “diretrizes gerais para o sistema de registro eletrônico de imóveis”, e cujo objetivo era aquele de “facilitar o intercâmbio de informações entre os ofícios de registro de imóveis, o Poder Judiciário, a administração pública e o público em geral, para eficácia e celeridade da prestação jurisdicional e do serviço público”.

Tinha-se em mente a busca da centralização, na esfera de cada Estado, das funcionalidades eletrônicas para acesso aos serviços cartoriais típicos, prestados pelos oficiais de registro de imóveis (artigo 8º, III, do Provimento nº 47/2015), vedada a concorrência entre os últimos e as centrais eletrônicas estaduais.

A partir do Provimento CNJ nº 47/2015, todos os oficiais de registro de imóveis dos Estados e do Distrito Federal passaram a suportar o dever de implantar e integrar o referido sistema. Com isso, foi autorizada pelo CNJ a prática dos seguintes atos no âmbito do SREI: II) o intercâmbio via Web Service de documentos eletrônicos e de informações entre os ofícios de registro de imóveis, o Poder Judiciário, a administração pública e o público em geral; II) oferecimento de ferramentas para a recepção e o envio de títulos em formato eletrônico; II) a expedição de certidões com assinaturas eletrônicas Pades e a prestação de informações em formato eletrônico; e IV) a formação, nos cartórios competentes, de repositórios registrais eletrônicos para o acolhimento de dados e o armazenamento de documentos eletrônicos. Tudo com o fim de universalizar, por meio de tecnologia da informação, o acesso à importante atividade cartorial no país.

Como se verifica, os serviços de consultas eletrônicas não são serviços cartoriais típicos, mas simples serviços secundários ou utilidades, operadas por aplicativos de internet, predispostas para: I) coleta de requisições eletrônicas e direcionamento às serventias imobiliárias competentes, com substituição dos pedidos “em papel” de outrora; e II) consulta organizada de andamentos e de respostas.

Diante das distintas realidades dos Estados da federação, andou bem a Corregedoria Nacional de Justiça ao atribuir às Corregedorias Gerais da Justiça de cada um dos Estados e do Distrito Federal a competência para complementar os comandos do Provimento CNJ nº 47/2015, bem assim autorizar, mediante ato normativo, que os próprios oficiais de registro de imóveis criem as referidas centrais de serviços eletrônicos compartilhados.

Para atender aos custos de manutenção da infraestrutura tecnológica associada à central, sem qualquer forma de distribuição de lucros, as associações estaduais, com confiança legítima na orientação do CNJ e das corregedorias, fez vultosos investimentos em tecnologia, especialmente na “nuvem”. Por isso, a surpresa pela mudança intempestiva de provimentos do CNJ, entre aqueles sucessivos que autorizavam e o recente que veda, fere os princípios de proteção da confiança, por evidente nemo potest venire contra factum proprium.

Fere a liberdade econômica de organização a imposição de gratuidade aos serviços eletrônicos prestados em favor da população, sempre em caráter opcional, como aqueles prestados pela Central Registradores Imobiliários gerida pela Associação dos Registradores de São Paulo (Arisp). É um ato que desconsidera normas de Direito privado que regem a prestação de serviços no país (artigo 594 do Código Civil); contraria a liberdade federativa da organização judiciária, pelo que afeta a autorização concedida pelo Poder Judiciário paulista (item nº 332 das NSCGJSP); e descumpre ato do próprio CNJ, do artigo 21 do Provimento nº 87/2019. Veja-se:

“Artigo 21 — A prestação de serviços a terceiros com a utilização de dados existentes na CENPROT se dará mediante convênio/termo de adesão que deverá conter cláusulas de responsabilidade recíprocas, contendo forma, prazo e taxas administrativas livremente ajustadas entre as partes“.

O preço privado dos serviços de consulta detém causa própria: remunerar os serviços eletrônicos. Nenhuma confusão guarda com os serviços típicos dos oficiais de registro de imóveis, cujos emolumentos devidos são pagos de acordo com os valores fixados nas tabelas de custas de cada Estado. O preço privado não é cobrado pelas serventias. Presta-se apenas para os fins de remuneração dos serviços eletrônicos prestados por meio da Central Registradores de Imóveis.

Os emolumentos, devidos às serventias de registro imobiliário do Estado, acompanham o regime jurídico tributário das taxas, e voltam-se ao custeio dos serviços públicos específicos e divisíveis (artigo 145, II da CF), representados pelos serviços cartoriais típicos que sejam solicitados pelos usuários. Porém, o custeio dos serviços eletrônicos privados não se confunde com os referidos serviços cartoriais, de natureza pública, a cargo dos oficiais de registro imobiliário.

Afora esses aspectos, não pode o CNJ impedir deliberação sobre receitas estatutárias, com interferência na competência da Assembleia Geral da Central Registradores para fixá-las, conforme o artigo 54, IV, do Código Civil. A contribuição foi aprovada por votação dos seus membros. Logo, como verba associativa ou como preço, descabe qualquer interferência do CNJ.

O CNJ tem sua competência delimitada para regular serviços de cartórios. Não pode usar desse espaço para restringir liberdade de organização ou tratar de remunerações que não se confundem com os emolumentos. Por isso, a pretexto de regular as atividades, não pode interferir na cobrança de preços privados e de interesse coletivo, de caráter opcional, para manutenção, eficiência e expansão do acesso eletrônico.

A Constituição buscou conferir maior autonomia aos serviços notariais e de registro em face do Poder Judiciário (artigo 236, § 1º, da CF). Nesse sentido, a criação das centrais eletrônicas estaduais continuou o processo de dinamização da atividade cartorial no país, com objetivo claro de ampliação de seu acesso. Sustentar entendimento diverso, como visto, equivaleria a convalidar medida típica de economias centralizadas, balizadas por forte dirigismo estatal.

O Conselho Nacional de Justiça, ao decidir pela exclusão da remuneração dos serviços eletrônicos por preços privados ou por contribuições associativas poderá lograr, como resultado, a precarização dos serviços de acesso, o que não atende ao propósito constitucional. A instituição de um banco de dados registral imobiliário, com dimensões de integração e coordenação nacional das serventias imobiliárias, evidencia-se fundamental para o exercício otimizado da atividade registral no país. Contudo, as centrais estaduais que prestam serviços eletrônicos necessitam ter meios suficientes para recuperar os custos despendidos em suas respectivas operações no âmbito do SREI.

Em vista disso, espera-se que o CNJ possa refletir muito bem sobre as consequências da sua decisão neste caso e assegure a clara separação entre emolumentos (taxas), devidos na hipótese dos serviços de cartórios e aqueles preços privados, pagos pelos serviços de consultas eletrônicas, com mero caráter de custeio das despesas com a respectiva manutenção e melhorias permanentes. Sem aqueles recursos, os cidadãos e as empresas sofrerão severas perdas de expansão dos serviços de acesso a registros, fundamentais em tempos de alta exigência de certeza jurídica ou garantias, bem como virão reduzidos os auxílios ou apoios a órgãos públicos, a bases como CNIB, ofício eletrônico e penhora online, e à própria evolução de SREI, ONR e outros.

Fonte: Consultor Jurídico

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