Artigo: Responsáveis por loteamentos clandestinos podem ter bens sequestrados – Por Marcos Paulo de Souza Miranda

As condutas relacionadas ao parcelamento clandestino do solo urbano constituem um dos maiores e mais graves problemas de ordem urbanística, ambiental e de patrimônio público que assolam as cidades brasileiras nos últimos tempos.

Ao contrário do que possa vir a pensar o senso comum, os crimes envolvendo a implantação de parcelamentos clandestinos são de altíssimo potencial lesivo, pois implicam graves violações à ordenação do território, acarretando transformações profundas e irreversíveis nas áreas objeto das intervenções, além de gerarem problemas sociais (como demanda por transportes, saúde, iluminação, abastecimento de água e educação; exposição a riscos de desastres etc.) e ambientais (por exemplo, supressão de vegetação, impermeabilização do solo, geração e deposição irregular de resíduos sólidos urbanos, lançamento de dejetos sem tratamento no ambiente, poluição visual etc.), na maioria das vezes de grande extensão e de baixíssimo grau de reversibilidade.

Ademais disso, esse tipo de criminalidade, na maioria das vezes, acaba por redundar no locupletamento ilícito de altas somas dos adquirentes das glebas alienadas (via de regra pessoas de baixo nível econômico e social que alimentam o sonho de uma casa própria), sem a necessária contraprestação consistente na implantação da infraestrutura mínima exigida pela legislação, como pavimentação, saneamento básico (incluindo drenagem pluvial, abastecimento de água, coleta e tratamento de esgotos), iluminação pública, além da transferência à administração pública de áreas verdes e institucionais.

Em razão do “golpe”, os ônus decorrentes da atividade ilícita e altamente lucrativa para os empreendedores acabam sendo imputados (normalmente pelo “sumiço” dos responsáveis) ao poder público municipal, que se vê na contingência de despender altas somas (normalmente milhões de reais por bairro) para arcar com a implantação de estrutura que deveria ter sido previamente providenciada pelo próprio loteador.

Tal circunstância impede que os recursos para tal destinados sejam investidos em outras áreas de atuação própria do poder público, tais como educação e saúde, causando enorme abalo nas políticas públicas locais, com evidente prejuízo para a Fazenda Pública.

José Afonso da Silva faz acurada constatação sobre os danos decorrentes dessas atividades ilícitas empreendidas com vigor pelas cidades brasileiras[1]:

O loteamento clandestino constitui, ainda, uma das pragas mais daninhas do urbanismo brasileiro. Loteadores parcelam terrenos de que, não raros, não têm título de domínio, por isso não conseguem a aprovação de plano, quando se dignam apresentá-lo à prefeitura, pois, o comum é que sequer se preocupem com essa providência, que é onerosa, inclusive porque demanda a transferência de áreas de logradouros públicos e outras ao domínio público. Feito o loteamento, nessas condições, põem-se os lotes à venda, geralmente para pessoas de rendas modestas, que, de uma hora para outra, perdem seu terreno e a casa que nele ergueram, também clandestinamente, porque não tinham documentos que lhes permitissem obter a competente licença para edificar no lote.

Praticam-se dois crimes de uma vez, um aos adquirentes de lotes, e outro, aos princípios urbanísticos, porque tais loteamentos não recebem o mínimo de urbanificação que convenha ao traçado geral da cidade. Tais loteadores não são urbanificadores, mas especuladores inescrupulosos que carecem de corretivos drásticos. Eles criam áreas habitadas, praticamente sem serem habitáveis, por falta de condicionamento urbanístico, as quais se transformam num quisto urbano de difícil solução, dada a questão social que neles geralmente se envolvem.

A Lei 6.766/79, que regulamenta o parcelamento do solo urbano no território brasileiro, preocupada em sancionar adequadamente as condutas acima descritas, previu em seu artigo 50 que constitui crime contra a administração pública, punido com reclusão de 1 a 4 anos e multa de cinco a 50 salários mínimos, a prática das seguintes ações:

I – dar início, de qualquer modo, ou efetuar loteamento ou desmembramento do solo para fins urbanos, sem autorização do órgão público competente, ou em desacordo com as disposições desta Lei ou das normas pertinentes do Distrito Federal, Estados e Municípios;

II – dar início, de qualquer modo, ou efetuar loteamento ou desmembramento do solo para fins urbanos sem observância das determinações constantes do ato administrativo de licença;

III – fazer ou veicular em proposta, contrato, prospecto ou comunicação ao público ou a interessados, afirmação falsa sobre a legalidade de loteamento ou desmembramento do solo para fins urbanos, ou ocultar fraudulentamente fato a ele relativo.

O crime é qualificado e punido com reclusão de 1 a 5 anos e multa de dez a cem salários mínimos, se praticado:

I – por meio de venda, promessa de venda, reserva de lote ou quaisquer outros instrumentos que manifestem a intenção de vender lote em loteamento ou desmembramento não registrado no Registro de Imóveis competente.

II – com inexistência de título legítimo de propriedade do imóvel loteado ou desmembrado.

Chegado a este ponto, vale refletir que o Direito Penal — sobretudo quando as infrações implicarem lesão interesses difusos ou coletivos —, para além de impor a devida sanção prevista em lei ao infrator, deve também assegurar o efetivo ressarcimento dos danos causados.

Exatamente por isso o artigo 91, I, do Código Penal prevê que é efeito da condenação tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime, e o artigo 387, IV, do Código de Processo Penal dispõe que o juiz, ao proferir sentença condenatória, fixará valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido.

Em sede de processo penal ambiental devem ser privilegiados, com maior vigor, os instrumentos que possam, a um só tempo, alcançar os diversos fins colimados pela legislação ambiental, pois, como bem observado pelo doutrinador Alex Fernandes Santiago[2], a reparação é essencial, imanente a qualquer discussão sobre a proteção do meio ambiente, e de nada serviria levar infratores à cadeia e abandonar as florestas desmatadas, os rios poluídos, e assim sucessivamente.

Esse pensamento harmoniza-se com a principiologia do processo penal coletivo, que tem como um de seus alicerces a integral reparação dos danos materiais, morais e sociais decorrentes das infrações penais que violarem bens difusos, coletivos e individuais homogêneos[3].

Ante tal cenário e considerando que eventual sentença penal condenatória pela prática de crime de implantação clandestina de parcelamento do solo urbano redundará na imposição do dever de reparar os danos causados, evidente a necessidade da adoção de medidas de cautela que assegurem a efetiva responsabilização do loteador, sob pena de a administração pública ter que arcar com valores próprios de seu orçamento para suprir a omissão do infrator, que normalmente aufere altas somas com o ilícito, adotando manobras de pulverização e blindagem patrimonial para se furtar ao cumprimento de suas obrigações.

Em decorrência de tais circunstâncias, entendemos ser plenamente viável a utilização, em ações penais versando sobre o crime tipificado no artigo 50 da Lei 6.766/79, da específica medida assecuratória prevista no Decreto-Lei 3.240/41[4], que sujeita a sequestro os bens de pessoas indiciadas por crimes de que resulta prejuízo para a Fazenda Pública.

É indene de dúvida que tal espécie de crime, pela sua própria natureza, como acima demonstrado, causa graves prejuízos à Fazenda Pública, tanto sob a ótica da violação aos padrões urbanísticos quanto pela consequente necessidade de o poder público implantar infraestrutura na área parcelada, o que é altamente oneroso, sem se falar no desfalque de áreas públicas, verdes e institucionais.

Quanto à estruturação urbanística, vale relembrar ser assente na jurisprudência pátria, em razão do disposto no artigo 40 da Lei 6.766/79, que existe o poder-dever do município de regularizar loteamentos clandestinos ou irregulares, mediante a execução das obras de infraestrutura consideradas essenciais, compreendendo, no mínimo, ruas, esgoto e iluminação pública, de forma a atender os moradores já instalados (STJ; REsp 1.164.893; Proc. 2009/0211816-7; SE; 1ª Seção; rel. min. Herman Benjamin; Julg. 23/11/2016; DJE 1/7/2019).

Em razão do exposto, se há alienação de glebas a terceiros e o parcelamento não conta com a infraestrutura urbanística legalmente exigida ou com a devida destinação de áreas públicas, verdes ou institucionais, restarão plenamente demostrados os requisitos para a decretação do sequestro de bens das pessoas físicas e jurídicas acerca das quais hajam veementes indícios de envolvimento na prática criminosa, posto que também os entes coletivos poderão ser responsabilizados criminalmente, na forma do artigo 3º da Lei 9.605/98[5].

Nos termos do artigo 4º do Decreto 3.240/41, o sequestro pode recair sobre todos os bens do indiciado e compreender os bens em poder de terceiros desde que estes os tenham adquirido dolosamente ou com culpa grave.

Nos termos do artigo 8º, transitada em julgado a sentença condenatória, importa a perda, em favor da Fazenda Pública, dos bens que forem produto ou adquiridos com o produto do crime, ressalvado o direito de terceiro de boa-fé.

Inserem-se como produto do crime do artigo 50 da Lei 6.766/79, por exemplo, os lotes integrantes do parcelamento clandestino e que ainda não tiverem sido alienados.

Se o crime de parcelamento ilícito resultar para a Fazenda Pública prejuízo que não seja coberto na forma do artigo acima, promover-se-á, no juízo competente, a execução da sentença condenatória, a qual recairá sobre tantos bens quantos bastem para ressarci-lo.

Enfim, a medida assecuratória do sequestro de bens previsto no Decreto 3.240/41 mostra-se como possível de ser utilizada em casos de crimes envolvendo o parcelamento clandestino do solo urbano, constituindo importante instrumento para acautelar bens dos responsáveis pelas práticas criminosas, evitando prejuízos de alta monta em detrimento da Fazenda Pública e dos interesses da coletividade.

[1] SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. São Paulo: Malheiros. 2006. p. 344.
[2] Fundamentos de Direito Penal Ambiental. Belo Horizonte: Del Rey. 2015. p. 349.
[3] ALMEIDA, Gregório Assagra. COSTA, Rafael de Oliveira. Direito processual penal coletivo. A tutela penal dos bens jurídicos coletivos. Belo Horizonte: D’Plácido. 2019. p. 176.
[4] Art. 1º Ficam sujeitos a sequestro os bens de pessoa indiciada por crime de que resulta prejuízo para a fazenda pública, ou por crime definido no Livro II, Títulos V, VI e VII da Consolidação das Leis Penais desde que dele resulte locupletamento ilícito para o indiciado.
[5] Sobre o tema: https://www.conjur.com.br/2017-jul-22/ambiente-juridico-lei-parcelamento-solo-responsabilizacao-pessoas-juridicas

*Marcos Paulo de Souza Miranda é promotor de Justiça em Minas Gerais e membro do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais e do International Council of Monuments and Sites (Icomos).

Fonte: ConJur

Deixe um comentário