Artigo – A questão do documento eletrônico no Código de Processo Civil de 2015 – Por Ettore Zamidi

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Não obstante o Código de Processo Civil de 1973 ter previsto a possibilidade de se admitir todos os meios de provas legais, ainda que não especificados em lei[1], o Código de Processo Civil de 2015, já com muitos dos tribunais de Justiça na era digital, fez uma tentativa tímida de abordar o tema, haja vista que a primeira lei sobre a utilização de processos eletrônicos nos tribunais pátrios data de 2006[2], portanto, 10 anos antes de o novo CPC entrar em vigor.

Contudo, vale consignar que o primeiro processo eletrônico ajuizado no país data de 10 de fevereiro de 2005, na 10ª Vara do Juizado Especial do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul[3].

Surpreende que, mesmo após 10 anos da utilização de processos eletrônicos nos tribunais pátrios, o novo Código de Processo Civil parece ainda considerar o suporte físico em papel como o meio “convencional” para documentos. Isso é inferido pela leitura dos artigos 439, 440 e 441 do referido códex. Vejamos:

Art. 439. A utilização de documentos eletrônicos no processo convencional dependerá de sua conversão à forma impressa e da verificação de sua autenticidade, na forma da lei.

O legislador poderia ter feito referência ao processo físico, ao processo cujos documentos têm como suporte o papel, entretanto, elegeu o termo “convencional” para fazer referência ao processo físico.

As observações do especialista Renato Opice Blum quanto ao processo legislativo cabem aqui também. Segundo o professor e advogado especialista em Direito Digital, “[n]os casos das questões tecnológicas, contudo, os debates legislativos, às vezes lentos, por vezes afobados, não raro resultam em textos jurídicos defectíveis, ambíguos ou insuficientes”[4].

Já de acordo com o doutrinador Cassio Scarpinella Bueno: “A primeira das regras, o art. 439, impõe a conversão à forma impressa do documento eletrônico para ser apresentada em processo convencional, isto é, em papel, ressalvada a verificação de sua autenticidade. A exigência pressupõe, evidentemente, que os autos do processo não sejam eles próprios eletrônicos, por isso a referência a ‘processo convencional’”[5].

No entanto, depreende-se da leitura do artigo 439 que, em vez de inovar, a referida legislação se prende ao meio físico, considerando-o como o meio “convencional” e condicionando a utilização da prova eletrônica à retrógrada forma impressa, deixando vago o que seria “na prova da lei”.

Da mesma forma, muito se questiona sobre a relevância do artigo seguinte, haja vista que a análise do valor probatório cabe ao juízo:

Art. 440. O juiz apreciará o valor probante do documento eletrônico não convertido, assegurado às partes o acesso ao seu teor.

Esse artigo tampouco escapou de críticas, segundo Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenahrt:

“Estabelece o código que, se o documento não for convertido ao meio físico pode o juiz dar-lhe o valor que entender adequado, desde que assegure às partes do processo o seu teor (art. 440 do CPC/2015). Novamente, um preceito sem qualquer valor. Afinal, sempre cabe ao juiz a avaliação do valor probante de todas as provas, sendo também inquestionável que as partes devem ter direito de acessar as fontes de prova realizadas até para que possam exercer o contraditório”[6].

Novamente, no artigo de 441, o novo Código de Processo Civil se refere à lei específica, demonstrando sua timidez e mais uma vez prorrogando-se a resolução da questão do documento probante eletrônico:

Art. 441. Serão admitidos documentos eletrônicos produzidos e conservados com a observância da legislação específica.

Esclarece Teresa Arruda Alvim Wambier que “[o] NCPC não estabelece regras para a produção e conservação de documentos eletrônicos, remetendo essa matéria para a legislação específica. Com efeito, tratando-se de questões sujeitas a alterações decorrentes do estado da técnica e da experiência — ainda recente — dos tribunais, o legislador houve por bem deixar sua regulação para a legislação própria”[7].

Contudo, o legislador aparenta ter sentido a necessidade de se aventurar em especificar e criar distinção onde não há, ao diferenciar fotografias digitais de fotografias extraídas da rede mundial de computadores, no âmbito do artigo 422, parágrafo 1º, pois todas as fotografias extraídas da rede de computadores são necessariamente digitais:

Art. 422. Qualquer reprodução mecânica, como a fotográfica, a cinematográfica, a fonográfica ou de outra espécie, tem aptidão para fazer prova dos fatos ou das coisas representadas, se a sua conformidade com o documento original não for impugnada por aquele contra quem foi produzida.

§ 1º As fotografias digitais e as extraídas da rede mundial de computadores fazem prova das imagens que reproduzem, devendo, se impugnadas, ser apresentada a respectiva autenticação eletrônica ou, não sendo possível, realizada perícia.


Conforme se verifica, muito há de se estudar, discutir e analisar acerca do tema que, devido à sua importância e corrente uso, urge-se o diálogo multidisciplinar técnico, bem como a proximidade e entendimento entre o Poder judiciário e as partes.

O Superior Tribunal de Justiça debruçou-se sobre o tema ao considerar a validade de um título extrajudicial assinado digitalmente pelas partes, sem, contudo, as assinaturas de duas testemunhas, conforme os requisitos dispostos no Código de Processo Civil para validade de títulos extrajudiciais[8].

Nesse importante precedente, verificamos que mesmo os ministros do Superior Tribunal de Justiça reconhecem que o Código de Processo Civil deixou a desejar, tendo em vista que o novo CPC foi sancionado no ano de 2015, em pleno século XXI, quando toda a sociedade já se manifesta e é afetada pelo digital.

Esse recente julgado da corte superior traz a importância da autoridade certificadora e seu papel em garantir autenticidade e autoria de um documento digital assinado eletronicamente:

“RECURSO ESPECIAL. CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. EXECUTIVIDADE DE CONTRATO ELETRÔNICO DE MÚTUO ASSINADO DIGITALMENTE (CRIPTOGRAFIA ASSIMÉTRICA) EM CONFORMIDADE COM A INFRAESTRUTURA DE CHAVES PÚBLICAS BRASILEIRA. TAXATIVIDADE DOS TÍTULOS EXECUTIVOS. POSSIBILIDADE, EM FACE DAS PECULIARIDADES DA CONSTITUIÇÃO DO CRÉDITO, DE SER EXCEPCIONADO O DISPOSTO NO ART. 585, INCISO II, DO CPC/73 (ART. 784, INCISO III, DO CPC/2015). QUANDO A EXISTÊNCIA E A HIGIDEZ DO NEGÓCIO PUDEREM SER VERIFICADAS DE OUTRAS FORMAS, QUE NÃO MEDIANTE TESTEMUNHAS, RECONHECENDO-SE EXECUTIVIDADE AO CONTRATO ELETRÔNICO. PRECEDENTES.

(…)


4. Nem o Código Civil, nem o Código de Processo Civil, inclusive o de 2015, mostraram-se permeáveis à realidade negocial vigente e, especialmente, à revolução tecnológica que tem sido vivida no que toca aos modernos meios de celebração de negócios, que deixaram de se servir unicamente do papel, passando a se consubstanciar em meio eletrônico.

(…)


8. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.”
RECURSO ESPECIAL No 1.495.920 – DF (2014/0295300-9), de relatoria do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino (julgado de 15 de maio de 2018) (g.n.)


De acordo com o julgado, a autoridade certificadora teve papel fundamental na certificação no que toca à autoria e autenticidade de um documento digital, dispensando, assim, a exigência legal para reconhecimento de documento particular como título executivo extrajudicial, nos moldes do inciso III do artigo 784 do novo Código de Processo Civil.

In casu, o ministro relator, Paulo de Tarso Severino (acompanhado pelos ministros Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro), ao considerar a caracterização como título executivo extrajudicial de contrato de empréstimo realizado eletronicamente, observou que a Infraestrutura de Chaves Públicas (ICP)[9] unificadas, bem como a utilização dos serviços do Comprova.com[10], faz as vezes das testemunhas:

“…a utilização dos serviços do que se chamou de “comprova.com”, faria as vezes das testemunhas em contratos tradicionais impressiona, devendo-se, pois analisar a função desempenhada pelas referidas funcionalidades, isso dentro do contexto desta novel e muito utilizada forma de celebração de negócios.

A assinatura digital realizada no instrumento contratual eletrônico mediante chave pública (padrão de criptografia assimétrico) tem a vocação de certificar – através de terceiro desinteressado (autoridade certificadora) – que determinado usuário de certa assinatura digital privada a utilizara e, assim, está efetivamente a firmar o documento eletrônico e a garantir serem os mesmos os dados do documento assinado que estão a ser enviados.

O padrão criptográfico de chave simétrica é aquele em que há apenas um código para criptografar ou descriptografar o documento eletrônico que é assinado, sendo que o assimétrico ou de chave pública (e mais seguro) utiliza duas chaves diversas, no caso, uma detida por aquele que assina digitalmente e outra pela autoridade certificadora.

Quando da assinatura digital de determinado documento eletrônico, entidades certificadoras fazem gerar um arquivo eletrônico a conter os dados do titular da assinatura, vinculando-o a uma chave e atestando a sua identidade.

A verdade é que nem o Código Civil, nem o Código de Processo Civil se mostraram totalmente permeáveis à realidade negocial vigente e, especialmente, à revolução tecnológica que tem sido experienciada no que toca aos modernos meios de celebração de negócios. Eles não mais se servem do papel, senão são consubstanciados em bits” (g.n.).

Assim, diante de diversas críticas já ponderadas por doutrinadores, bem como magistrados, podemos inferir que, de fato, o Poder Legislativo não alcançou o êxito esperado por muitos juristas ao tratar de documentos digitais, deixando eventuais conflitos controvérsias para serem ainda conduzidos, definidos, concordados e estipulados pela sociedade em geral, juristas e, mais especificamente, por magistrados.

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[1] Lei 5.869/73, Código Civil de 1973. Art. 332. Todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa.
[2] Lei 11.419/2006.
[3] http://buscalegis.ufsc.br/revistas/index.php/observatoriodoegov/article/view/10189/30113(acesso em 28 de julho de 2018).
[4] BLUM, Renato Opice. Dosagem dos remédios jurídicos em face das nova Tecnologias. In Anuário CESA – Centro dos estudos das sociedades de advogados. Ribeirão Preto, Ed. Migalhas, 2017. P. 62.
[5] BUENO, Cassio Scarpinella. Novo Co?digo de Processo Civil Anotado. São Paulo, Ed. Saraiva, 2015, p. 301.
[6] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENAHRT, Sérgio Cruz. Prova e Convicção.São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 2015, p. 625.
[7] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins; RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva; MELLO, Rogério Licastro Torres de. Primeiros Comenta?rios ao Novo Co?digo de Processo Civil. Ed. Revista dos Tribunais, Sa?o Paulo, 2015, p. 721.
[8] Art. 784. São títulos executivos extrajudiciais:
(…)
III – o documento particular assinado pelo devedor e por 2 (duas) testemunhas.
[9] A Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileiras – ICP-Brasil é uma cadeia hierárquica de confiança que viabiliza a emissão de certificados digitais para identificação virtual do cidadão.
Observa-se que o modelo adotado pelo Brasil foi o de certificação com raiz única, sendo que o ITI, além de desempenhar o papel de Autoridade Certificadora Raiz – AC-Raiz, também tem o papel de credenciar e descredenciar os demais participantes da cadeia, supervisionar e fazer auditoria dos processos (https://www.iti.gov.br/icp-brasil, acessado em 20/12/2018).
[10] Comprova.com é a união de um grupo de empresas públicas e privadas para prover o mercado com uma solução robusta que combina evidências digitais e elementos legais de comprovação. É o primeiro ambiente que fortalece juridicamente as transações eletrônicas, agregando elementos técnicos e legais para comprovar o envio, recebimento, autoria e conteúdo de uma mensagem ou documento eletrônico. (https://www.comprova.com/servlet/public?action=cnt&page=index_nova, acessado em 20/12/2018).


Fonte: Consultor Jurídico (ConJur)