Artigo – Migalhas – Prazo de tolerância na incorporação e caso fortuito e força maior – Por Bernardo Borchardt

No intuito de conter a propagação do vírus, medidas restritivas severas foram impostas pelo Poder Público, determinando a suspensão de atividades consideradas “não essenciais” ou mesmo o caso de municípios que decretaram lockdown1.

O mercado imobiliário não ficou isento desse cenário. Viu-se canteiros de obra completamente parados, mão de obra escassa, fornecedores impossibilitados de suprir às necessidades dos empreendimentos. Nesse contexto, nesse breve artigo, aborda-se as consequências dessa realidade pandêmica, desde o ponto de vista jurídico. Elegeu-se um tema de relevância às incorporações, que vem a ser a possibilidade de que a obra seja entregue sem a configuração de mora e/ou inadimplemento do incorporador, após o prazo de tolerância, nas hipóteses previstas em contrato, diante da configuração de caso fortuito e força maior (“CFFM“).

Prazo de tolerância na incorporação imobiliária

Passa-se a uma aproximação acerca do artigo 43-A da lei 4.591/1964, cujo prazo contemplado no seu caput se popularizou no mercado imobiliário e no Poder Judiciário, antes mesmo da sua positivação, como “prazo de tolerância”. Esse dispositivo legal prevê a possibilidade da inclusão de cláusula contratual, nos contratos de incorporação imobiliária, que estabeleça um prazo de tolerância de até 180 dias para entrega da unidade. Nesse caso, se a entrega da unidade ocorrer dentro do referido prazo, o incorporador não incorrerá em mora, nem em hipótese de inadimplemento contratual.

Diferentemente, constituiu-se a hipótese em que findo o prazo de tolerância estipulado, sem que o empreendimento seja concluído. Nesse caso, o adquirente terá a faculdade de: (i) faze jus a multa moratória de 1% (um por cento) ao mês dos valores pagos, no período que exceder o prazo de tolerância; (ii) buscar a resolução do contrato, sem prejuízo do recebimento da integralidade dos valores desembolsados pela unidade imobiliária e das penalidades estabelecidas; ou (iii) celebrar um distrato pela incorporadora pelos termos acordados pelas partes2.

O artigo 43-A da lei 4.591/1964 positivou o entendimento de diversos tribunais estaduais, com destaque ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo3, assim como ao entendimento que vinha sendo consagrado pelo STJ desde 2017, quando do julgamento do Recurso Especial 1.582.318/RJ4. Ao nosso sentir, tanto a fundamentação do STJ na decisão sobre a matéria, quanto a positivação do prazo de tolerância na lei 4.591/1964 foram acertadas. Isso porque a lei não pode ser avessa à realidade, devendo o legislador – e o aplicador do direito – considerar a realidade para bem aplicar a lei.

No caso das incorporações imobiliárias, a complexidade desses empreendimentos – que envolvem a articulação de diversos fatores de produção sujeitos à imprevisibilidade – impossibilita, em parcela considerável dos casos, precisar uma data exata para a entrega das unidades aos adquirentes. Diante dessa realidade e da enxurrada de ações judiciais sobre o tema, a jurisprudência e, posteriormente, o legislador, pacificaram a validade da cláusula de tolerância. Isso não significa que o incorporador não deverá aplicar toda a diligência possível a fim de não exceder o prazo de 180 dias pois, nesse caso, sofrerá as consequenciais cabíveis na hipótese de verificação do descumprimento contratual e legal.

Assim resta claro que a cláusula de tolerância foi necessária em razão da considerável complexidade e imprevisibilidade envolvida na viabilização das incorporações imobiliárias em território nacional. Aqui, chama-se a atenção a sujeição dos empreendimentos à liberação da carta de habitação por Prefeituras de Municípios que não estão aparelhadas para dar o retorno dentro de um prazo razoável.

De outro lado, uma vez entendida a necessidade da existência do prazo de tolerância no âmbito das incorporações imobiliárias, surge o debate em relação a quais seriam os efeitos caso ultrapassado esse prazo. Isto é, mesmo com a aplicação do prazo de tolerância de até 180 dias, poderia haver uma flexibilização, diante do caso concreto, de sorte que o incorporador não incorre em mora e/ou inadimplemento por entrega da obra após ultrapassado o prazo de tolerância? A celeuma foi intensificada em decorrência dos céleres e inesperados efeitos trazidos pela Covid-19, que acarretaram, em muitas localidades, a paralisação e/ou suspensão dos fatores de produção.

Caso fortuito e força maior em tempos de pandemia

É notório que o coronavírus impactou diretamente as relações contatuais, notadamente aquelas acordadas antes da pandemia. Nesse cenário, passou-se a discutir os efeitos jurídicos decorrentes nos contratos, invocando-se, com uma frequência jamais vista, os institutos do caso fortuito e da força maior. Dessa forma, antes que passemos à análise da possibilidade da extensão do prazo de tolerância em tempos de Covid-19, é necessário o entendimento do artigo 393 do Código Civil.

Enquanto o caput do artigo 393 do Código Civil delimita os efeitos do caso fortuito e força maior – isenção de responsabilidade do devedor pelos prejuízos dele resultantes (quebra do nexo de causalidade) – seu parágrafo único caracteriza sua ocorrência, afirmando que “o caso fortuito e de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir”. Denota-se que caso fortuito ou de força maior, são configurados por evento inevitável (necessário), cujus efeitos são irresistíveis ao devedor quando da sua ocorrência (não era possível evitar ou impedir).

Ademais, o devedor que invoca a ocorrência de caso fortuito ou força maior CFFM só se exime de responsabilidade caso não tenha contribuído para o resultado danoso. Ou seja, o fortuito insere-se no âmbito dos eventos que exorbitam os deveres gerais de diligência que o devedor está adstrito. A aplicação do instituto começa, portanto, onde a diligência se torna inútil para evitar o resultado.

Nesse contexto a pergunta que se faz é: os efeitos trazidos pela Covid-19 configuram hipótese de excludente de responsabilidade do devedor em razão do caso fortuito ou força maior? A resposta é “depende”.

Conforme antes exposto, CFFM restam configurados5 quando a obrigação for impactada por um evento imprevisível e que torne impossível seu cumprimento pelo devedor. Contudo, não se pode ceder à tentação simplista e descolada da boa técnica jurídica de afirmar que o coronavírus repercutiu de maneira idêntica em todos os contratos. Nem acontecimentos gravíssimos, como uma pandemia, causam impactos nos contratos de forma idêntica aos negócios jurídicos, dependendo, sim, a sua caracterização6, da análise de causa e efeito da pandemia no negócio jurídico objeto de análise, bem como da impossibilidade do devedor de evitar tais consequências. Assim, compete à parte prejudicada a demonstração de que a obrigação foi, efetivamente, impossibilitada em razão da pandemia.

Em suma, para que o incorporador possa ter êxito ao invocar a excludente resultante da configuração de caso fortuito ou de força maior, prevista pelo artigo 393 do Código Civil, ele deverá demonstrar, com base em fatos concretos, que os efeitos da pandemia geraram consequências que o impediram de realizar a prestação em conformidade com aquilo que foi estabelecido. Como antes mencionado, a prestação devidamente cumprida pelo incorporador em face do adquirente reveste-se na conclusão do empreendimento dentro do prazo de tolerância estipulado pelas partes. Assim, percebe-se a importância da mensuração do elemento culpa do incorporador7, no sucesso ou insucesso na sua eventual pretensão de invocar a excludente em razão de CFFM.

Interpretação do prazo de tolerância à luz do Código Civil – o necessário diálogo entre o artigo 43-A da lei 4.591/1964 e o artigo 393 do Código Civil

Assentadas as bases que tocam ao presente estudo, quais sejam, o prazo de tolerância previsto na lei 4.591/1964 e o caso fortuito e a força maior, disciplinados pelo Código Civil, passamos ao questionamento que nos guiou até aqui: pode o prazo de 180 dias previsto no artigo 43-A da lei 4.591/1964 ser estendido em razão de consequências oriundas da pandemia?

Ao nosso sentir, o prazo de tolerância considera uma “imprevisibilidade genérica”. Não estão abarcados pela referida disposição, portanto, todos os eventos que possam atrasar o cronograma de obra, incluindo-se as hipóteses que podem ser trazidas em razão da configuração do caso fortuito e força maior.

Com isso em mente, temos que não há qualquer conflito entre o artigo 43-A da lei 4.591/1964 e o artigo 393 do Código Civil. Isso é, o prazo de tolerância e a excludente de responsabilidade trazida pelas hipóteses de caso fortuito e força maior coexistem em harmonia, sendo ambos institutos aplicáveis em diferentes contextos. Por essa razão, não podemos excluir a possibilidade de o incorporador que, comprovadamente, tiver o seu cronograma impactado pelos efeitos da pandemia, buscar a exclusão da sua responsabilidade em decorrência de fortuito que impediu a entrega das unidades aos adquirentes no prazo pactuado, por não incorrer o incorporador em mora8. Inclusive, essa é a dicção do artigo 396 do Código Civil, dispondo este que “[n]ão havendo fato ou omissão imputável ao devedor, não incorre este em mora”.

Ressalta-se que a eventual postergação na entrega da obra, invariavelmente, tem o condão de prejudicar de forma igual, ou mesmo maior, o incorporador, que se vê cerceado de receber grande parte da parcela do preço, que costuma ocorrer após a expedição do habite-se, por meio de financiamento imobiliário aos adquirentes.

Pode-se arguir que, em determinados estados da federação, obras de construção civil foram apenas paralisadas por um certo período, eis que logo em seguida à paralisação generalizada das atividades, a construção civil foi incluída em muitos locais no rol das chamadas atividades “essenciais”. Contudo, para a incidência dos institutos do caso fortuito e da força maior, o prazo de paralização é apenas mais um elemento a se verificar. Isso porque o atraso na obra pode ser ocasionado por diversas razões além da expressa determinação de paralização das obras pelo Poder Público, como a falta de mão de obra ou de escassez de materiais de construção no mercado.

De outro lado, a arguição genérica de CMFM não exime a responsabilidade daquele incorporador inadimplente em razão de atrasos a ele imputáveis. Assim, passa-se à análise da conduta exigida do incorporador à comprovação de CFMF.

Incorporação imobiliária e caso fortuito e força maior – conduta exigida do incorporador

É importante reconhecer que a possibilidade de o incorporador invocar a hipótese de CFFM não significa acobertar a sua inércia. Mesmo diante de um fato dito irresistível, exige-se uma conduta ativa do agente, decorrente dos deveres anexos à boa-fé objetiva, consagrada no artigo 422 do Código Civil.

O fato de o cronograma de obra ter sido prejudicado em razão dos efeitos de uma pandemia não afasta o legítimo interesse do adquirente de ser informado do status da obra. Dessa forma, resta claro que o incorporador tem o dever de manter os adquirentes atualizados sobre o estado do empreendimento e de possíveis intempéries com a maior antecedência possível.

Frisa-se que a configuração de CFFM é, realmente, a exceção à regra. Ademais, o Poder Judiciário poderá aplicar a exceção de forma modulada, trazendo uma solução que não onere em demasiado uma parte, ainda que tal excludente seja o instituto para se buscar o equilíbrio contratual por si só9. Como exemplo, pode-se ventilar o pagamento de um aluguel mensal pelo incorporador ao adquirente, em caso de superação do prazo de tolerância, em valor entre 0,5% a 0,35% ao mês, em vez do percentual de 1% ao mês, previsto pelo artigo 43-A, § 1º da lei 4.591/1964. A análise do elemento culpa do incorporador será crucial para essa quantificação.

Tendo em vista que a prova quanto à ocorrência de CFFM dependerá do incorporador em eventual judicialização posterior, é aconselhável que todos os eventos que atrasem o cronograma de entrega sejam devidamente documentados. Apenas para citar alguns exemplos, o incorporador deverá: (i) registrar no relatório diário de obra, os atrasos, faltas e número de empregados disponíveis no canteiro de obra; (ii) reunir todos os decretos e outras regulações que impeçam ou suspendam atividades no canteiro de obras ou que impactem no fornecimento de matéria-prima; (iii) reunir e-mails e outras comunicações aos adquirentes em relação a anormalidades e eventuais atrasos como resultado direto do efeitos da pandemia; (iv) fazer prova das paralisações dos órgãos públicos em relação à emissão da carta de habite-se como resultado direito da pandemia; e (v) fazer prova da conduta proativa para dirimir os efeitos do retardamento da obra, na medida do possível e da razoabilidade, entre várias outras comprovações.

Ditas precauções serão o passaporte não apenas para eventualmente isentar a responsabilidade do incorporador efetivamente impactado pela pandemia, mas para afastar a conduta oportunista daqueles que tentam se esquivar dos efeitos da mora ou mesmo do seu inadimplemento sem um respaldo jurídico.

Conclusão

A seguir, indicamos aquelas conclusões que, ao nosso entender, melhor refletem as corretas soluções ao tema ora tratado:

(i) Os reflexos da pandemia, como regra geral, não isentam a responsabilidade do incorporador pela postergação da obra, após o prazo de tolerância pactuado;

(ii) É recomendável ao incorporador para que possa comprovar a configuração da excludente de CFFM, que adequados meios probatórios, da ocorrência de eventos que tenham causado interferência na execução e bom termo da obra. O incorporador deverá manter os adquirentes informados, minimizando as consequências para eles, bem como deverá atuar com condutas positivas para dirimir interferências no curso da obra e evitar o atraso10; e

(iii) O incorporador, dependendo das circunstâncias, poderá isentar-se dos efeitos da mora e/ou do inadimplemento na entrega da obra, mesmo após transcorrido o prazo de tolerância previsto no artigo 43-A, caput da lei 4.591/1964.

Fonte: Migalhas

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